Hoje, dia 3 de dezembro, celebra-se o Dia Internacional das Pessoas com deficiência. O papel do cuidador informal tem um valor incalculável para as mesmas. Como tal, assinalamos a data com um excerto do novo livro de Carmen Garcia, mais conhecida por @amaeimperfeita. A obra A Última Solidão.
Quando chegou ao lar, o Zezinho estava assustado. Olhava-nos com olhos muito abertos, com a boina que usava na cabeça levemente de lado e umas mãos muito trémulas. Não falava. Mas assentiu com a cabeça quando a prima lhe disse que iria ter com ele depois de jantar, dia sim, dia não, para fazerem a caminhada que, agora, passaria a ser uma coisa entre os dois.
O fácies do Zezinho tinha qualquer coisa de diferente que ainda hoje não sei bem descrever, mas que se agravava pela implantação muito baixa das orelhas. E quando lhe perguntei se queria ir até à sala conhecer os restantes utentes da instituição, ele acenou afirmativamente.
Rapidamente todos perceberam que o José Joaquim não era um utente comum ou, sequer, mais um idoso. E as utentes do lar ainda capazes quase faziam fila para tomar conta dele. De tal forma que perdi a conta à quantidade de vezes que tive de lhes pedir que não substituíssem o Zezinho naquilo que ele conseguia fazer sozinho. É que, por vontade delas, até a sopa lhe dariam à boca.
Ali, no lar, o Zezinho ganhou um grande número de cuidadoras que rivalizavam entre si para ver quem o ajudava mais. E ganhou também um amigo, de oito anos, filho de uma funcionária, que levava muitas vezes um carrinho telecomandado que fascinava o eterno menino. Foi uma amizade tão boa que “João” era a única palavra que o Zezinho fazia questão de dizer. A prima, entretanto, honrou o prometido e, dia sim, dia não, lá estava ela ao portão do lar para a caminhada.
Mas ainda que tenhamos sempre a tendência para tratar adultos com deficiência como crianças ou, como já aqui referi, como eternos meninos, a verdade é que idosos com deficiência não deixam de ser idosos. Acontece que são idosos muito particulares, porque, para além das necessidades que a velhice carrega, eles têm muitas outras.
Uns meses depois de ter chegado à instituição, numas análises de rotina, percebeu-se que o marcador tumoral para o cancro da próstata estava muito elevado. E daqui até ao diagnóstico de cancro prostático foi um saltinho. Bem mais complicado foi explicar ao Zezinho a necessidade da quimioterapia, a dureza do pós-tratamento, a queda do cabelo, as náuseas, a algaliação… Não faço ideia de quantas vezes aquela algália foi arrancada por um Zezinho agitado e muito zangado, com um balão cheio com 15 mililitros de água destilada a passar pela uretra. Mas foi sempre impossível fazê-lo entender o que se passava.
Uma madrugada, estavam as auxiliares a posicionar os utentes mais debilitados, e ouviram gritos altos de dor. Era o Zezinho que desesperava, pálido e suado, enquanto apontava para a algália. No saco colector, tudo o que se via era sangue vivo e muitos coágulos. Foi encaminhado para o hospital, onde ficou internado e onde viria a falecer menos de duas semanas depois.
Acabou mesmo por morrer antes da tia que, francamente debilitada, ainda conseguiu visitar o sobrinho no hospital e levar-lhe uma fotografia da mãe.
As últimas semanas de vida no lar foram muito duras para todos. O Zezinho, que nunca percebeu o que estava a acontecer-lhe nem de onde vinham tantas dores, começou a ficar desesperado e agressivo. Nos poucos dias em que conseguimos que saísse do quarto, partiu tudo o que conseguiu apanhar, recusou alimentar-se, bateu ou tentou bater em todos os outros utentes que o abordavam.
Nunca vi ninguém tão ferido, perdido e desesperado como este homem que foi também um eterno menino. Às vezes, tinha a sensação de que ele ainda esperava que a mãe voltasse, o abraçasse e levasse para casa, para o cadeirão de verga em frente à televisão. A prima, percebendo o mesmo desespero do que nós, passou a ir diariamente ao lar e costumava cantar-lhe o Ó ramo ó que linda rama que era, segundo nos dizia, a canção favorita do Zezinho. E ele, às vezes, sorria-lhe. E dava-lhe a mão. E muitos abraços. Mas quando ela saía, por muito que tentássemos, a escuridão chegava e ele não sabia lidar com ela porque, na verdade, nem sequer a percebia.
– Tem medo, Zezinho? – perguntei-lhe, uma vez quando, já deitado para dormir, reparei que tinha os olhos arregalados na direcção de uma sombra na parede do quarto.
E ele assentiu com a cabeça.
– Quer que fique aqui até adormecer?
E ele anuiu pela segunda vez e, depois, começou com um pranto uivado e desolador que me partiu o coração.
Pessoas como o José Joaquim, o Zezinho como gostava de ser tratado, habitualmente não chegam à velhice. Mas quando chegam, na esmagadora maioria das vezes, chegam muito sozinhas porque perderam pelo caminho, roubadas pela idade, as suas maiores referências enquanto cuidadores.
Nunca ninguém chegou a saber excatamente de que condição padecia o Zezinho, mas pela face e, como já referi, pela implantação baixa das orelhas, acredito que estaríamos a falar de alguma síndrome genética. Se olharmos para os dados das síndromes mais comuns como, por exemplo, a trissomia 21, constatamos que a esperança de vida dos seus portadores ronda os sessenta anos. Mas noutras síndromes menos comuns, a esperança média de vida encurta consideravelmente. Na síndrome de Hunter, a esperança média de vida é de dez a vinte anos, na síndrome de Edwards, os portadores mais velhos registados chegaram aos quinze anos… E é assim em tantas síndromes e tantas patologias que condicionam debilidade intelectual que não estamos, de todo, preparados ou habituados a ver idosos com este tipo de condições. Para além do Zezinho, apenas conheci outro caso na minha vida profissional e outro na minha vida pessoal, ainda que, ambos, tivessem uma idade superior a sessenta e cinco anos, mas inferior a setenta.
A história do Zezinho marcou-me, não porque tenha tido um final feliz, mas porque nunca tinha visto um desamparo como aquele que, muitas vezes, ele manifestava. O desamparo de quem está sozinho, perdido, de quem nada conhece ou nada tem que o agarre. O desamparo de quem não tem capacidade cognitiva para entender o que está a acontecer-lhe e que perdeu ou está afastado de todas as suas referências.
Às vezes, e sei que corro riscos ao dizê-lo, o Zezinho parecia-se muito com um animal assustado e indefeso. Infelizmente, muito mais difícil de resgastar e fazer feliz. Não só porque ele não compreendia, mas também porque nós e as nossas instituições não estamos preparados para este tipo de utente que concentra em si duas grandes fragilidades da espécie humana: a velhice e a deficiência.
*Excerto do capítulo “José Joaquim”